22 de outubro de 2024
Brasil está no epicentro do tráfico global de animais e tem a China como cliente fiel
Apesar dos olhares internacionais, Brasil se destaca como um fornecedor de diversas espécies para mercados ilegais, com Beijing sendo um dos principais compradores
Por: André Amaral, A Referencia
É improvável que você tenha um vizinho aficionado por sopa de barbatana de tubarão. Ou um familiar que o convide para um tentador ensopado feito com sapo amazônico. Churrasco de lagarto com o pessoal do futebol no fim de semana? Não desceria nem pegaria bem, provavelmente. Besouros fritos ou caramelizados como tira-gosto? “Não, obrigado, estou de dieta”, seria uma boa resposta.
Esses são pratos que estão a milhares de quilômetros de distância das mesas do Brasil. Mas o país, impulsionado pela riqueza de sua biodiversidade e pela alta demanda internacional, ocupa uma posição central no tráfico global de animais silvestres, especialmente no que diz respeito a ingredientes usados na exótica gastronomia do outro lado do mundo. Entre as principais rotas ilegais, o Brasil se destaca como um fornecedor de diversas espécies para mercados ilegais, com a China sendo um dos principais compradores.
Se trata de um mercado que movimenta milhões de dólares anualmente, financiando atividades criminosas e colocando em risco inúmeras espécies nativas. Tubarões, espécies amazônicas e aves estão entre os alvos mais visados.
As movimentações criminosas incluem o tráfico de barbatanas de tubarão, amplamente utilizado na culinária asiática, e rãs amazônicas, que, além de serem vendidas para o preparo de pratos exóticos, também são utilizadas em pesquisas ilegais e na confecção de produtos de beleza. Outra parcela significativa desse mercado envolve aves raras, frequentemente capturadas para abastecer o comércio de animais de estimação de luxo.
Estudos apontam que muitas espécies traficadas têm como destino final cozinhas de restaurantes de elite, laboratórios de pesquisa clandestinos e até mesmo o mercado de joias. Produtos derivados de animais exóticos, como ossos, penas e pele, são vendidos em mercados negros para a confecção de acessórios e adornos.
Em entrevista à ONU News, o delegado e ambientalista Guilherme Dias, responsável pela Delegacia de Proteção ao Meio Ambiente do Paraná, destacou que o tráfico de animais é a terceira atividade criminosa mais rentável no mundo, ficando atrás apenas do tráfico de drogas e de armas.
“No Brasil o tráfico de barbatanas para servir à culinária é muito presente, o tráfico de rãs amazônicas venenosas, utilizadas para pesquisa e para fins estéticos, em virtude do seu veneno, também é muito presente. O tráfico de araras. Veja que existem muitas araras que são levadas, os ovos dessas araras em coletes nos aeroportos para que esses animais sejam destinados ao tráfico internacional”.
Apesar dos esforços de fiscalização, o volume de apreensões ainda está muito aquém do necessário para conter o fluxo ilícito. Segundo ambientalistas, a falta de controle nas fronteiras e a presença de redes internacionais bem estruturadas fazem com que o Brasil continue sendo um dos principais atores nesse tráfico.
Em um dos casos que a fiscalização brasileira funcionou, em 2021, a Polícia Rodoviária Federal (PRF) realizou a prisão de um traficante internacional que transportava aproximadamente 200 animais vivos. Entre eles, estavam 50 aracnídeos de diferentes espécies, 80 besouros, 25 sapos e 20 lagartos. Os animais foram encontrados na bagagem de mão do criminoso, um biólogo russo que fazia tráfico internacional de animais para fins científicos (biopirataria), segundo a Agência Brasil.
Biopirataria é fortemente impulsionada pela China
Estima-se que cerca de 38 milhões de animais são traficados por ano no país, segundo dados da Organização Social de Interesse Público (Oscip). Daniel Eduardo Visciano de Carvalho, chefe da Unidade Técnica do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) no Aeroporto de Guarulhos, falou com A Referência sobre os principais destinos dos animais traficados do Brasil.
“No caso dos besouros e coleópteros, o principal destino é o Japão. Eles têm uma longa tradição de manter esses animais, inclusive em escolas, onde as crianças costumam cuidar de besouros como parte de sua cultura. Esses insetos são muito valorizados por lá”, explica Carvalho.
Há alguns fãs tão ardorosos de besouros no Japão, principalmente entre jovens, que recorrem a importadores em busca de raças maiores e mais fortes.
Carvalho também falou sobre o tráfico de animais destinados ao consumo, destacando os principais destinos.
“Quando falamos de produtos traficados para consumo alimentar, o destino é principalmente a Ásia, especialmente países como China, Hong Kong, Malásia e Vietnã. Isso inclui barbatanas de tubarão, pepinos do mar e bexigas natatórias de peixe, que são bastante procurados no comércio internacional. Essas mercadorias têm restrições em diversos países, e aqui no Brasil não é diferente, então muitos tentam obter esses produtos de maneira ilícita”, detalha.
As barbatanas de tubarão de espécies existentes nas águas brasileiras, como o tubarão-azul, têm um cliente preferencial e quase exclusivo que costuma esvaziar o depósito.
“Quase 100% das barbatanas de tubarão traficadas do Brasil são destinadas ao mercado chinês. Eles costumam usar Hong Kong como um centro de distribuição comercial, mas a maior parte acaba indo para a China. Hoje, praticamente todas as espécies de tubarões no Brasil estão ameaçadas de extinção, com exceção do tubarão-azul, que recentemente foi incluído no Anexo II da CITES (Convenção sobre o Comércio Internacional das Espécies Ameaçadas). Desde essa inclusão, o governo brasileiro não emitiu mais nenhuma autorização para exportação”.
No Brasil, a pesca de tubarões é considerada ilegal. De acordo com o Ibama, a prática indiscriminada e irregular de captura de tubarões tem levado a uma dramática diminuição de suas populações em todo o mundo. Diversas espécies, incluindo o tubarão anequim, também recentemente adicionado à lista nacional de espécies ameaçadas de extinção, estão sendo afetadas por essa situação preocupante.
Carvalho respondeu se crê que a legislação brasileira é suficiente para combater o tráfico de animais silvestres ou há necessidade de melhorias.
“A legislação ambiental brasileira, que é baseada na Lei de Crimes Ambientais (Lei 9.065 de 1998), por si só, não é suficiente para combater esse comércio ilegal. Muitos dos crimes relacionados a ela são classificados como de menor potencial ofensivo, o que não é dissuasivo o suficiente. É necessário aplicar essa lei em conjunto com outras, como o Código Penal, para enquadrar atividades de contrabando. O caso do russo, por exemplo, que foi condenado a mais de 10 anos de prisão por tráfico de animais, foi uma exceção. Um trabalho muito bem feito em conjunto da Polícia Federal com o Ibama. Mas não é o comum”.
Carvalho também explicou as sanções administrativas que o Ibama pode aplicar aos infratores.
“As multas impostas pelo Ibama são altas. Por exemplo, quando alguém é flagrado com um animal ameaçado de extinção ou incluído na CITES, a multa é de R$ 5 mil por animal. Contudo, estudos indicam que apenas cerca de 2% das multas aplicadas são realmente pagas, o que faz com que as multas, apesar de altas, não sejam suficientes para dissuadir o tráfico internacional de animais”, observou.
Ou seja: mesmo com as multas altas, o problema persiste. O analista ambiental respondeu se existe alguma proposta para melhorar a legislação.
“Seria interessante que as penas fossem aumentadas e melhor justificadas. Hoje, por exemplo, não há uma distinção legal entre alguém que mantém um papagaio em casa e um traficante que é flagrado com centenas de animais. Isso precisa ser corrigido para que a legislação seja mais eficaz”.
Mercado clandestino
A pesca ilegal na América do Sul e e em outros países da América Latina tem sido fortemente criticada no mundo. A China, cujos pesqueiros são responsáveis pela maior fatia de pesca ilegal, não declarada e não regulamentada (da sigla em inglês IUU – illegal, unreported and unregulated fishing) em todo o mundo, afirma ter implementado novas políticas e regulamentações a fim de combater a prática.
Enquanto as ações da China não apresenta resultados práticos, países latinos vêm se esforçando para resolver o problema por conta própria, invariavelmente com o suporte dos Estados Unidos. Panamá, Equador, Chile, Peru, Costa Rica e Brasil apoiam o aumento da transparência e do monitoramento através de dados abertos.
Em apoio, o governo norte-americano forneceu aos países latino-americanos quase 50 barcos desde 2015. Além disso, Washington afirma que planeja enviar 15 equipes de treinamento para qualificar os profissionais que atuam no combate à pesca ilegal nas nações latinas.
O México é, desde 2016, um outro forte exportador de barbatanas de tubarão para China e Hong Kong, segundo a Cites. Elas rendem cerca de US$ 2 por quilograma aos mexicanos, e as barbatanas secas vendidas em Hong Kong chegam a custar até US$ 70 o quilograma.